Há uma velha maldição disfarçada de bênção que diz “Possas viver em tempos interessantes!”. A armadilha deste desejo é que a estabilidade, a serenidade e a normalidade raramente são interessantes. Por oposição, a anomalia, a transformação e o desequilibro são, quase universalmente, interessantes. Desse ponto de vista, os tempos que vivemos são interessantes em extremo.

Por todo o lado, vemos sinais de uma sociedade deslaçada. Vemos desfazerem-se os pilares sobre os quais, na segunda metade do século passado e, em particular, sobre o consenso do Pós-Guerra Fria, fomos construindo a nossa vida em sociedade. O modelo económico de capitalismo industrial vai soçobrando perante a vertigem tecnológica da nova economia digital. A legitimidade de um modelo político assente em Estados Democráticos e Sociais, destruído o mito do crescimento económico perpétuo e incapaz de, pelo menos, estancar o crescimento de brutais desigualdades sociais, começa a mostrar sinais de uma doença de que o populismo e a polarização são os sintomas principais. Na ordem internacional, a transição de poder entre uma potência em declínio e uma nova potência emergente abala todo o sistema internacional que se vai rompendo nos seus pontos mais frágeis e acena com a ameaça de conflitos mais alargados.

Foi perante este cenário, esboçado a traços muito largos, que o Papa Leão XIV, nos dias que se seguiram à sua eleição, proferiu um notável discurso aos membros do Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé. Neste discurso, o Papa Leão, fiel ao espírito do seu antecessor homónimo, não hesita em olhar para este mundo com franqueza e demonstrar que, da Cátedra de S. Pedro, também se vê a ordem internacional.

Para os embaixadores reunidos, o Papa Leão escolhe três palavras fundamentais: Paz, Justiça e Verdade. Num mundo dilacerado por conflitos em todos os quadrantes, as primeiras palavras do seu pontificado foram precisamente a exortação de Paz do Cristo Ressuscitado. Mas, como lembrou, esta Paz não pode ser meramente uma paz negativa, marcada pela ausência de guerras ou a pausa entre conflitos. Deve ser uma Paz positiva e pró-ativa, não uma Paz que meramente se alcança, mas uma Paz que se constrói. E para a construção de uma Paz genuína, não há outro fundamento do que a Justiça entre os povos e entre todos os seres humanos. Paz sem Justiça é um mero armistício.  A história do período entre as duas Guerras Mundiais é particularmente instrutiva sobre este ponto.

O Santo Padre, no seu discurso, começa pela Paz e passa de seguida para a Justiça. É um belo artifício retórico: começar pelo que todos desejamos, para depois lembrar o que é mais difícil de alcançar. Mas a mensagem que quer passar inverte a ordem das palavras: sem Justiça não há Paz. O artifício retórico é refinado ainda mais um pouco, apontando para o verdadeiro desafio, sem o qual nada disto fará sentido: a Verdade.

Numa sociedade deslaçada em que todos os consensos são postos em causa, em que, há falta de propósitos e princípios coletivos para a nossa vida em sociedade, cada um apenas se rege pelos seus interesses individuais, os factos transformam-se em matéria de opinião e os princípios são meros instrumentos para alcançar um qualquer interesse egoísta, que imediatamente se trocam quando entravam esse caminho. Que Verdade num mundo assim? Diz o Papa Leão que “quando as palavras assumem conotações ambíguas e ambivalentes (…) é difícil construir relações autênticas, uma vez que se perdem as premissas objetivas e reais da comunicação”. Faltando a Verdade que nos une a todos numa perceção comum da realidade e dos valores fundamentais em jogo, que Justiça é possível? Apenas a justiça em que, nas imortais palavras dos poderosos Atenienses aos habitantes da pequena Melos, “os fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que devem”.

O Santo Padre enuncia três palavras – Paz, Justiça e Verdade – mas a sua mensagem inverte-as: sem Verdade, não há Justiça e, sem Justiça, não há Paz. Este é o grande desafio dos nossos dias: responder a um mundo em que, em todo o lado, ouvimos a fatídica pergunta de Pilatos: “Que é a Verdade?”. Num mundo às avessas, a resposta é difícil, mas uma coisa sabemos e o Santo Padre também a recorda: a Verdade é indissociável da Caridade. A Verdade cristã não acusa e exclui quem dela se afasta, nem é pessoal e intransmissível. Antes, ela acolhe de todo o coração e aponta, não para uma meta qualquer, mas para o caminho que conduz à Verdade: a atitude de discípulo de Cristo.

Agostiniano de todo o coração, o Papa Leão termina dizendo que a Igreja não se cansará de dizer a Verdade, mesmo num mundo que parece pouco disposto a ouvir. Parece ouvir-se nestas palavras a exortação de Santo Agostinho aos pastores: “Se eu for negligente em procurar o que se extravia e se perde, também o que é forte e sadio sentirá a tentação de se extraviar e perder”. Mesmo quando a resposta nos ilude, a verdadeira negligência é deixar de tentar. Porque ser discípulo de Cristo não é um estatuto, nem salva o justo solitário. É pôr-se a caminho com o que se extravia e perde. No nosso quotidiano e – porque não? – também na Ordem Internacional.

João Correia Diogo

artigo para o jornal diocesano Porta do Sol, partilhado com a Agência Ecclesia 

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