Por ocasião das celebrações do Jubileu do 50º aniversário da criação da sua Diocese, que começa no dia 16 de Julho, a Catedral de Santarém recebeu um novo espaço litúrgico no altar-mor. O projecto das novas peças, que incluem um novo altar, ambão, cátedra e coluna para o Círio Pascal, é da autoria dos monges do Mosteiro de São Bento de Singeverga e a execução, em pedra de Estremoz, é do escultor Paulo das Neves. Para além da muita polémica que têm causado e que me recuso a comentar, este novo espaço é uma marca poderosa de renovação e de vigor da Igreja de Santarém nesta auspiciosa data que, celebrando a história, a desafia a construir futuro. A mim, que as vi pela primeira vez no dia 14 de julho, motivou-me estas breves ideias.
A primeira ideia prende-se com o significado da mudança. Naturalmente, podem existir razões práticas para essa mudança, mas queria aqui focar-me em razões de natureza menos prática, que são sempre mais aliciantes para reflectir. Porquê um novo espaço litúrgico numa catedral com tantos anos e memórias de serviço à comunidade? Porquê uma nova direção artística a um património de reconhecido valor cultural? Valerá a pena? Para muitos, a resposta imediata e constante a esta última questão é sempre um retumbante “Não”. Ninguém ousaria retocar a “Primavera” de Botticelli, ou alterar as melodias de uma sinfonia de Beethoven, ou reescrever o final d’ “Os Maias” de Eça de Queiroz. Para quê mexer na arte da Catedral?
Se considerássemos uma igreja apenas como uma obra de arte, talvez este raciocínio fizesse sentido. Mas, apesar de serem indiscutivelmente obras de arte, as igrejas são, antes de tudo, espaços vivos. Espaços onde cada comunidade se encontra e se renova em cada encontro. Portanto, mesmo a arte numa igreja deve ser uma arte viva, que se renova a cada momento como a própria comunidade se renova. Tantas vezes, como cristãos, somos confrontados com uma cultura de morte na sociedade de hoje. Mas, dentro da Igreja, somos cada vez mais confrontados com uma cultura morta, que se prende a sinais litúrgicos e artísticos do passado (escolhidos arbitrariamente ou consoante gostos e agendas pessoais da vasta história da Igreja) para aí encontrar uma pureza estética constante e imutável que se confunde com a pureza espiritual a que o Evangelho nos chama. Onde o Mistério da Encarnação se confunde com os hinos que se compuseram em latim para o venerar e onde o Sacramento da Eucaristia se confunde com o traçado dos altares onde se celebra. Podíamos, desde logo, perguntar-nos que Caridade é possível de realizar com cânones estéticos! Mas o que a história da Igreja nos mostra é o oposto: constância na Fé e diversidade temporal e geográfica nas expressões, porque só na conjugação destas duas dinâmicas é que a Igreja se mantém viva e atuante no mundo. A constância da Fé morre se for sujeita à “pureza” de uma só forma de expressão, contrária à diversidade que nasce da liberdade dos filhos de Deus. É este o espírito de aggiornamento a que o Concílio Vaticano II nos exorta e, neste sentido, a renovação dos espaços litúrgicos em momentos de especial significado, como este jubileu, está perfeitamente enquadrada com este espírito de cultura viva e de renovação constante que mantém viva a Fé no mundo de hoje e agora.
Outro grande sinal desta desejada constância na Fé é o sentido da mudança que se operou: passar de um espaço litúrgico predominado pelas peças de talha dourada para peças talhadas nas cores e texturas da pedra de Estremoz. Ninguém contesta que as antigas peças deste espaço litúrgico eram excelentes exemplares artísticos. Mas é importante considerar o seu período e contexto. A talha dourada, como elemento característico da arte barroca, é um produto curioso do seu tempo. O Barroco surge num momento da história da Europa de profunda degradação social: as convulsões geopolíticas da ordem medieval moribunda e do surgimento de novas formas de organização política, as divisões religiosas da Reforma Protestante e da Contra-Reforma, as convulsões económicas de um modo de produção capitalista em nascimento criaram uma Europa fragmentada e dividida, onde os horrores da guerra e a miséria das populações eram presenças constantes. A arte barroca surge, em grande medida, como um contraponto a esta situação de colapso das estruturas sociais, onde se procurava mascarar a realidade com uma exuberância artística exagerada. A talha dourada é também isto: falso ouro, uma fina camada de riqueza pintada sobre a madeira perecível e corruptível. É exemplo de uma arte de aparências e ilusões (vejam-se, também, os numerosos exemplos da utilização de trompe-l’oeil nas peças deste período).
Talvez por isso seja uma arte à qual tantos se apegam hoje em dia, numa sociedade em que os laços e estruturas sociais se parecem degradar a olhos vistos e tão predominada por uma cultura de aparência e ilusão. Mas, se assim é, torna-se ainda mais urgente relembrar a esta sociedade que o Evangelho de Jesus Cristo é uma rocha segura para construirmos as nossas vidas individuais e as nossas vidas em comunidade. Às ansiedades do mundo atual, os cristãos são chamados a responder com a serenidade e constância do Evangelho, que dissipa todas as aparências com a sua simplicidade e que apenas se pode aderir com uma sincera conversão de coração. As novas peças do espaço litúrgico do altar-mor da Sé de Santarém são expressões eloquentes deste imperativo para a Igreja de hoje e agora.
E tudo isto se pode dizer sem entrar na análise dos belíssimos elementos estéticos deste novo conjunto: da utilização da pedra de Estremoz que, nas suas cores e texturas, harmoniza perfeitamente com a restante pedraria do altar-mor, às espirais esculpidas que decoram o ambão e o altar, que convidam a contemplar a eternidade, mas que lembram também o desabrochar de uma rosa, elemento tão apropriado numa igreja dedicada à Rosa Mística, Maria, Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Mas, quando a arte é viva, não se esgota no espaço de umas meras linhas e convida a uma contemplação frutífera e também ela sempre renovada, que os membros da Igreja de Santarém poderão fazer a partir de agora na sua Catedral.
João Francisco Diogo
- Licenciado em Direito pela NOVA School of Law e Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela NOVA FCSH
- Doutorando em Direito Internacional na NOVA School of Law